É de Casa: gentileza ou racismo?

 


No penúltimo programa do “É de Casa”, que ocorreu no sábado (11/06), a atitude da apresentadora Talitha Morete para com uma das convidadas chamou bastante a atenção dos telespectadores, ao pedir que uma vendedora de cocadas se levantasse para servir os demais. A grande questão é que a apresentadora já tinha se deslocado até a mesa onde as cocadas estavam, inclusive, atravessando o cenário do programa com a bandeja de doces em mãos, quando se direcionou até Dona Silene e a pediu que servisse as suas próprias cocadas.

Para quem não assistiu ao programa e/ou não acompanhou a repercussão do caso nas redes sociais, há outros detalhes bem importantes a serem levados em consideração para que possamos entender a polêmica do caso e a profundidade do debate: a vendedora é negra e foi a única convidada negra presente no programa naquele dia.

A partir deste episódio, a internet fervilhou com comentários de diversos internautas debatendo a respeito do racismo estrutural no Brasil. Mas o que seria o racismo estrutural? É o conjunto de práticas discriminatórias, muitas delas de cunho histórico e cultural, implementado na sociedade para beneficiar um grupo minoritário em detrimento de outros, em razão da cor e etnia. Estas práticas foram sendo executadas de maneira reiterada e propagadas ao longo dos séculos, contribuindo para uma enorme desigualdade social, em que as classes subordinadas são submetidas à opressão e à exploração das classes dominantes.

No Brasil, o racismo estrutural se iniciou com o processo de escravização dos negros, em que eram considerados objetos dos senhores de engenho e da sociedade aristocrática da época. Eles não eram considerados indivíduos quanto mais cidadãos de direitos, razão pela qual foram explorados, torturados, abusados sexualmente e até assassinados pelas mãos de homens brancos. E a partir deste contexto histórico, o racismo se espalhou para vários setores da sociedade, interferindo na estrutura econômica, social, política e cultural do país que excluiu os negros de importantes espaços sociais, mesmo após o fim da escravidão.

Por meio do episódio, portanto, o Brasil inteiro pôde entender um pouco como se dá a sutileza do racismo estrutural em pequenas ações do cotidiano. Entretanto, acredito que Talitha Morete não teve nenhuma intenção de ofender ou humilhar a Dona Silene, mas inconscientemente repetiu um comportamento cultural que está há muito tempo enraizado na cabeça das pessoas: o de pensar que os negros estarão sempre à serviço dos homens brancos pelo fato de terem sido escravizados em tempos remotos.

Vale ressaltar a importância do uso do termo “negro escravizado” ao invés de “negro escravo”, uma vez que estas palavras conotam a ideia de que os negros são escravos por natureza, como se fosse uma característica inerente à eles, quando em realidade, os negros foram escravizados contra a própria vontade. Afinal, a escravidão foi uma condição imposta de maneira brutal e desumana às diversas tribos africanas, retirando de seus integrantes: a liberdade, autonomia, identidade cultural, dignidade e até mesmo a vida.

Infelizmente, a escravidão consolidou um estigma tão forte nas futuras gerações de homens e mulheres negras que mesmo tornando-se livres, continuaram sendo considerados inferiores aos brancos, sendo o racismo uma das piores heranças históricas já vistas no mundo.

O fato de Talitha ter pedido a Dona Silene para servir os outros convidados, mesmo ela sendo uma das convidadas do programa, evidencia a ideia de que as funções de empregada doméstica, copeira, garçom, frentista, dentre outras, são exclusivas para negros. Contudo, estávamos diante de uma mulher negra, empreendedora, chamada para falar sobre o êxito do seu negócio. Porém, a figura da ilustre vendedora de cocadas foi associada a um mero personagem coadjuvante que estava ali presente para servir.

A apresentadora Talitha recebeu uma enxurrada de críticas nas redes sociais, vindo a se pronunciar no seu perfil do Instagram três dias após o ocorrido, para se desculpar:

“Antes de vir aqui, a primeira coisa que fiz foi falar com a Dona Silene e pedir desculpas para ela. Eu também preciso me desculpar com todas as pessoas, com o meu público, pela minha fala. Errei e não há nada a ser dito para justificar ou minimizar esse erro, a não ser me desculpar. Desde sábado, eu tenho refletido sobre o ocorrido. Eu tenho refletido sobre o lugar que ocupei nesse contexto. Como ser humano, como comunicadora, quero transformar esse episódio em aprendizado e num compromisso de vigília antirracista constante. É isso que posso e devo fazer. Aproveito para agradecer ao meu colega Manoel Soares pela sensibilidade e o cuidado com a Dona Silene. É muito importante quando estamos num grupo diverso que comprova como o mundo pode ser melhor quando inclui a todos. Muito obrigada”.

Manoel Soares também é um dos apresentadores que compõe a equipe do programa, e ao perceber a atitude de Talitha, pegou a bandeja das mãos da confeiteira e ele mesmo serviu os convidados. Comportamento que foi muito destacado e elogiado por muitos.

Há pessoas que discordaram do pensamento de que houve racismo, dizendo que Talitha Morete somente quis que Dona Silene fizesse as honras da própria cocada. No entanto, só seria possível descartar esta possibilidade verificando se a apresentadora já teve a mesma conduta, em episódios anteriores, com convidadas que não sejam negras. Como eu não acompanho o É de Casa, não tenho como afirmar que não foi um caso de racismo estruturado. Mas seria algo a se pensar para a sociedade não continuar condenando uma pessoa que dá o tratamento igual para todos os convidados do programa que vão para divulgar seus produtos e receitas culinárias.

Faço ressalvas para o fato de que todos nós somos seres humanos e cometemos erros, até mesmo quando queremos muito acertar ou fazer o bem a alguém. Errar faz parte da natureza humana e estamos aqui justamente para aprender e evoluir. Portanto, não há motivos para cancelar virtualmente uma profissional que apresenta bom comportamento dentro do ambiente de trabalho e comete um deslize, ainda mais quando ela reconheceu o próprio erro.

O mais bonito disso tudo foi a declaração de Dona Silene em suas redes sociais, pedindo que as pessoas não maltratassem a Talitha, por ela não ter se sentido discriminada em nenhum momento. Muito pelo contrário, a confeiteira se sentiu muito bem recebida no É de Casa e agradeceu por Talitha ter sido a ponte que a levou ao programa, dando maior visibilidade ao seu trabalho.

Que o amor e o perdão sejam sempre os contragolpes utilizados no combate ao racismo, seja ele explícito, velado, estrutural ou institucional.

 

Foto: Reprodução/Revista Forum

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