Aborto: questão de saúde pública
Os
últimos acontecimentos no Brasil e nos Estados Unidos trouxeram à tona o
polêmico debate sobre a legalização do aborto. Procedimento que já se tornou
legal em diversos países como a Suécia, Noruega, Canadá, Austrália, França,
Alemanha, Uruguai, Argentina, dentre outros. Contudo, nem todos estes países
permitem totalmente o aborto, impondo requisitos legais para que a gestação seja
interrompida. Enquanto alguns países usam critérios de saúde, outros utilizam a
situação socioeconômica e financeira da família para conceder a autorização do
aborto. Para os países que adotam critérios de saúde, a Organização Mundial da
Saúde recomenda que considerem não só a saúde física, mas também psicológica
das gestantes.
O
Brasil é um dos países com a segunda legislação mais proibitiva do mundo,
segundo a Revista Exame, permitindo o aborto apenas em três situações
específicas: risco comprovado à vida da gestante, estupro e gestação de bebê
anencéfalo. Nestes casos, não há necessidade de autorização judicial, sendo
aconselhável o rápido atendimento médico ao invés de primeiramente exigir o
comparecimento da vítima na delegacia.
Como
a lei penal brasileira não estipulou um prazo limite para a realização do aborto,
o Ministério da Saúde orienta que a prática do abortamento seja realizada até a
20ª semana de gestação, podendo ser estendida até a 22ª, desde que o feto tenha
menos de 500 gramas.
Os
recentes casos da menina de dez anos que foi estuprada em Santa Catarina e o da
atriz Klara Castanho, também vítima de estupro, evidenciam o quanto as questões
relacionadas ao corpo da mulher ainda são consideradas celeumas para a
sociedade. Principalmente quando as mulheres são julgadas mesmo após terem sido
vítimas de um ato tão cruel e violento. É triste pensar que muitas pessoas as
criticam ferozmente, culpando-as pela decisão do aborto quando deveriam expor e
condenar os estupradores, os verdadeiros e únicos responsáveis por tanta dor e
sofrimento.
No
entanto, uma boa parcela da sociedade condenou uma criança de onze anos por
querer abortar e uma mulher de vinte e um, que decidiu dar o filho para adoção
por ser fruto de um estupro. Um ato digno e bastante louvável devido às
circunstâncias em que foi gerado. Porém, como o ato do aborto pode ser mais
condenável do que o de estupro? Uma violação não só do corpo, mas também da
alma que foi corroída por dentro, causando diversas cicatrizes que talvez nunca
se curem.
Acredito
que muitos destes críticos fervorosos fundamentam suas opiniões com base na
religião, ainda mais pelo fato de um bebê ser considerado umas das maiores
dádivas concedidas por Deus a um casal. E de fato o é, quando concebida pelo
amor que os une. Mas como exigir que uma mulher conceba um filho fruto de
estupro em seu ventre? Já não bastasse o trauma do ato sexual, ela teria que
ser a genitora deste filho tão indesejado? Afinal, como amar um ser que traz
tanta repulsa e indignação dentro de si? Como viver sabendo que tem uma criança
que carrega os genes daquele que a estuprou?
É
ultrajante exigir que estas mulheres carreguem este fardo e desgosto para o
resto de suas vidas. Imagino que o aborto legal impede que o sofrimento da
vítima continue se prolongando no tempo, por romper o elo que a uniria
eternamente ao seu agressor. Portanto, da mesma forma que o estuprador não é
pai, não há como exigir afetividade ou empatia destas mulheres para com o feto
resultante de estupro. O ato de tornar-se mãe deveria ser um motivo de
felicidade e não de tristeza, angústia ou amargura.
Na
sexta-feira (24/06), a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou uma decisão que
reverteu um precedente muito importante na história do país que garantia o
acesso ao aborto para todas as mulheres, conhecido como o caso "Roe x
Wade". Portanto, ao validar uma lei criada no Estado do Mississippi
(2018), que veta a interrupção da gravidez após a 15ª semana de gestação, mesmo
em casos de estupro e incesto, os juízes da Corte abriram um novo precedente dando
autonomia aos estados para que possam
legislar sobre o tema e proibir o procedimento novamente.
A
partir de 1973, a decisão do ilustre caso “Roe x Wade” garantiu às mulheres o
direito ao aborto até a 28ª semana de gestação, o que será inviabilizado no
contexto atual em decorrência das novas restrições às garantias legais antes
previstas. Vale ressaltar que a Suprema Corte não proíbe a realização do
aborto, mas retirou a proteção que antes era dada por lei federal, que foi
revogada. De acordo com o Centro de Direitos Reprodutivos, estima-se que mais
da metade dos estados norte-americanos proíbam o aborto imediatamente,
especialmente os estados mais conservadores.
Nos
Estados Unidos, esta grande mudança na legislação será ainda pior para mulheres
pobres, que não terão assistência jurídica e nem médica para interromper a
gestação e terão que se deslocar para os estados liberais que continuarão
permitindo o aborto. Um verdadeiro retrocesso histórico na luta das mulheres
por seus direitos e garantias fundamentais.
Há
países como o Suriname, Egito, Iraque, Nicarágua e Filipinas que não permitem o
aborto em quaisquer circunstâncias, até mesmo quando a pessoa é violentada
sexualmente, sendo as legislações mais proibitivas do mundo. Imaginem o
sofrimento das mulheres, crianças e adolescentes, vítimas de estupro, que não
possuem assistência das autoridades locais e nem da polícia para prestar queixa
e ainda por cima, sofrem caladas – sem direito de fala – vivendo sob a atuação
normativa que as silencia e as privam totalmente de direitos.
Segundo
a Organização Mundial da Saúde, 23.000 mulheres morrem todos os anos de abortos
inseguros, feitos em sua grande maioria em clínicas clandestinas e em países em
desenvolvimento na África, Ásia e América Latina. E quando não morrem, outras
dezenas de milhares sofrem com complicações de saúde posteriores ao
procedimento, desde infecção por curetagem mal feita, perfuração do útero,
hemorragia uterina, embolia pulmonar, dentre outros. Muitas destas complicações
são irreversíveis como a infertilidade e a histerectomia. Uma realidade
lamentável e que está longe de ser alterada.
Além
das sequelas físicas, não há como não mencionar os fenômenos psíquicos que são frequentes
nas mulheres que abortam, focando em vítimas de estupro: forte abalo emocional,
depressão, medo, aversão aos futuros parceiros, perda do apetite sexual, etc. Como
punir estas mulheres pelo sofrimento que passaram, uma vez que serão
atormentadas pelo resto de suas vidas, tendo que conviver com tantas cicatrizes
e traumas?
Ouvi
dizer que o aborto não irá diminuir o trauma destas mulheres, inclusive,
trazendo consequências gravíssimas para a saúde delas como foi mencionado
anteriormente. Contudo, mesmo que não se possa mudar o passado, acredito que o
aborto traz uma perspectiva de futuro para mulheres que foram sexualmente
abusadas, no sentindo de não terem nenhum vínculo com o estuprador. Este fato, acredito
eu, ameniza a dor ao não prolongá-la com a gestação de um bebê fruto de
estupro.
Caso
uma vítima de estupro decida gerar e conceber uma criança para dá-la em adoção,
é um direito dela também. Mas cada mulher irá fazer as suas próprias escolhas,
sem que sejam julgadas, obrigadas a fazer algo que não queiram ou impedidas de
abortar. Vamos julgar menos e ser mais solidários com a dor destas mulheres,
que perderam não só a dignidade, mas o prazer pela vida e os sonhos de outrora
que foram destruídos.
Foto: Reprodução
Fontes:
https://exame.com/mundo/quais-sao-os-paises-onde-o-aborto-e-autorizado-no-mundo/
https://veja.abril.com.br/mundo/com-o-fim-do-direito-ao-aborto-nos-eua-o-que-acontece-a-seguir/
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61929519
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61931286
https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/consequencias-do-aborto
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