Infância interrompida

 


É com um pesar muito grande que escrevo este texto, pois não há palavras suficientes para descrever o sentimento de dor, revolta e indignação que muitas pessoas, assim como eu, sentiram ao se deparar com a história da criança de dez anos de idade que foi estuprada pelo tio durante quatro anos. Como se não bastasse o fato de ter sido estuprada desde os seis anos de idade por ele, a menina descobriu recentemente que estava grávida, após sentir fortes dores abdominais e ser encaminhada pelos avós ao hospital para fazer um exame.

E desde então, a vida desta garotinha virou de ponta cabeça a partir do momento em que a Justiça Estadual do Espírito Santo autorizou a realização do aborto em razão da gravidez ter sido consequência de estupro. Decisão mais que acertada e em total conformidade com o Ordenamento Jurídico Brasileiro, que permite o aborto em circunstâncias bem extremas, sendo o estupro uma delas.

Além deste motivo, também existe um segundo critério legal em que o aborto é permitido no Brasil: nos casos em que a mulher poderá apresentar sérios problemas de saúde, podendo até mesmo vir a óbito por se tratar de uma gravidez de risco. Portanto, não há dúvidas de que o aborto realizado na menina nesta segunda-feira (17/08) teve total amparo legal.

Contudo, estamos falando de uma criança de tenra idade que já passou por inúmeros traumas e, apesar do organismo ter maturado com a chegada do ciclo menstrual, ainda possui um corpo em desenvolvimento e vivência a fase da infância. Infelizmente, sua inocência foi corrompida com os abusos que sofreu durante tanto tempo em silêncio, pois era constantemente ameaçada pelo tio.

Em meio a toda esta tragédia, acredito que há males que vem para o bem e, esta gravidez inusitada tornou-se uma evidência difícil de ser escondida ou ocultada tanto pela vítima quanto pelo agressor. Graças a ela, o pedófilo e abusador foi finalmente descoberto. Do contrário, temeria pela vida da menina que continuaria sendo estuprada por muitos anos até adquirir força e coragem para delatar o próprio tio. Mas até lá, o estrago seria ainda mais irreversível e danoso demais para com um ser tão inocente e frágil.

 Um dos primeiros pensamentos que veio a minha mente foi com relação aos sentimentos de mágoa, angústia e mortificação dos pais da garotinha ao descobrir que o próprio irmão e cunhado teria sido capaz de cometer tal atrocidade com a filha deles. Imagino que não há sofrimento maior do que este. Entretanto, segundo o site de notícias G1, a mãe da vítima já é falecida e o pai está preso, não havendo indícios até o presente momento de que tenha conhecimento do ocorrido.

Por outro lado, é lamentável a situação dos avós que não perceberam que havia algo de errado com a neta. Eles são detentores da guarda da criança, órfã de mãe e, apesar de não terem culpa do que aconteceu, viverão com este tormento para sempre. Mas quem poderia imaginar ou sequer cogitar a ideia de que uma ocorrência desta natureza estaria acontecendo no seu próprio âmbito familiar?

Muitas pesquisas realizadas com vítimas de estupro no Brasil mostram que a maioria dos agressores são pessoas bem próximas a elas, tais como pai, padrasto, tio e avô. Um dado alarmante que deve ser levado em consideração para entender o porquê deste comportamento ser tão recorrente na sociedade atual. O que está por detrás do abuso sexual de crianças? Será apenas um distúrbio mental ou há o predomínio da cultura lascívia da pornografia infantil?

A identidade da menina não foi divulgada pelas autoridades locais e tampouco pelos jornais, justamente para preservar e proteger a integridade física e moral da criança diante da repercussão do caso em todo o país. No entanto, de forma inexplicável, a militante de extrema-direita Sara Fernanda Giromini, mais conhecida como Sara Winter, divulgou o nome da garotinha nas redes sociais e o endereço do hospital em que ela abortaria o bebê.

Sara não só causou constrangimento à criança e seus familiares, como fomentou a aglomeração de um grupo radical de religiosos que protestou em frente ao hospital. Eles se posicionaram de forma enfática e bastante impetuosa contra o aborto e, inclusive, chamaram o médico que se prontificou para fazer o aborto de assassino.

Mas que contradição é essa em que a sociedade brasileira se depara mais uma vez? Como é possível estas pessoas julgarem uma menina de apenas dez anos de idade, que provavelmente não teve noção de fato do que lhe aconteceu, de abortar uma gravidez indesejada e resultante de um estupro? Como seria possível uma criança dar à luz a outra? Como seria o futuro desta relação mãe/filha, fruto de abuso sexual?

Uma parcela da sociedade é muito cruel ao impor um sacrifício tão grande para uma vítima de estupro, a de gerar um filho de seu agressor, ainda mais quando se trata de uma criança! Afinal de contas, estas pessoas não têm filhos, sobrinhos? Não tem empatia pelo sofrimento alheio? Pois ao meu ver, é desumano demais exigir que esta menina carregue o peso de um fato que não foi responsável. Foi apenas e tão somente vítima!

Infelizmente, estes religiosos fervorosos que se dizem tão próximos a Deus, são os primeiros a criticar e a julgar a vida alheia, sem nem ao menos tentar compreender a realidade de outrem. São tão cegos pela própria crença e, muitas das vezes, fanatismo, que não conseguem refletir sobre suas ações e comportamentos radicais em determinadas situações.

Enquanto todos apontavam o dedo podre para criticar a pobre menina, ninguém questionou os atos ou procurou saber sobre o verdadeiro culpado e responsável pela jovem estar passando por uma experiência tão traumática. O país vive de falsos moralistas que defendem o nascimento de uma vida gerada pelo estupro e não condenam o estupro em si. Realmente lastimável.

O tio que estava foragido foi encontrado em Minas Gerais pela polícia civil e já está preso. Ele confessou o crime e responderá judicialmente pelo estupro de vulnerável, com a qualificadora por ser tio da menina e com aumento de pena pelo resultado da gravidez. Também responderá pelo crime de ameaça.

Apesar de todo este sofrimento, a criança passa bem e está sendo acompanhada por médicos e pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo para que medidas protetivas sejam tomadas e para que ela possa prosseguir com a vida dela. As primeiras medidas são: mudança de residência para garantir a segurança e alteração do nome na carteira de identidade.

Ainda enquanto estava no hospital, a garotinha recebeu diversos presentes e brinquedos de pessoas que se sensibilizaram com a história da pequena. Que eles possam remetê-la novamente a infância que em parte foi perdida. E mesmo que não seja possível esquecer um trauma desta natureza, que esta criança tenha a oportunidade de recomeçar a vida e ser feliz. 


Foto: Ilustrador Nando Motta/Instagram @desenhosdonando

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