Justiça por Mariana Ferrer
A
trágica história iniciou-se em 15 de dezembro de 2018, no “Beach Club” de
Jurerê Internacional, em Florianópolis, quando a blogueira e influenciadora digital,
Mariana Ferrer conheceu o empresário André de Camargo Aranha na festa em que a
mesma atuou como promoter. Em determinado momento, umas das câmeras de vigilância
do estabelecimento os flagrou entrando juntos em um camarim privado. Entretanto,
o que prometia ser uma noite festiva, tornou-se um pesadelo na vida de Mariana.
Aos
vinte e um anos de idade, a blogueira alegou ter sido dopada e violentada pelo
empresário enquanto estavam a sós no camarim, perdendo até mesmo a virgindade. Ela
também alegou ter sofrido um lapso de memória entre o momento em que uma amiga
lhe levou para um dos camarotes em que André Aranha estava e a hora em que
desceu uma escada escura. Transtornada com o que tinha acontecido, solicitou os
serviços de Uber para voltar para casa e durante o trajeto, ligou para a mãe
para informá-la sobre o estupro.
Após
notificar a polícia sobre o ocorrido, Mariana Ferrer foi submetida a exames
periciais que confirmaram o rompimento do hímen e resíduos de sêmen de André também
foram encontrados na roupa da vítima. Com base no depoimento da própria promoter
e nas provas colhidas durante a investigação, o Ministério Público de Santa
Catarina denunciou André de Camargo Aranha pelo estupro de vulnerável,
tipificado no artigo 217-A, §1°, do Código Penal Brasileiro.
De
acordo com o ordenamento jurídico pátrio, há três tipos de estupro de vulnerável,
em que o ato sexual não consentido é presumido: 1°) quando a vítima é menor de
14 anos; 2°) quando, independentemente da idade da vítima, ela possuir enfermidade
ou deficiência mental que lhe retira o necessário discernimento para a prática
do ato e 3°) por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência à
agressão.
Contudo,
os exames de alcoolemia e toxicológico, realizados em menos de 24 horas após o
episódio, testaram negativo para substâncias alcoólicas e entorpecentes, ou
seja, não se constatou o consumo de álcool ou de drogas, apesar de constar na
comanda da influenciadora digital que ela pediu, pelo menos, uma dose de gim. Por
tal motivo, o advogado do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho, juntamente com
o novo Promotor de Justiça que assumiu o caso no lugar de Piazza, entenderam
que não se tratava de estupro de vulnerável.
Segundo
o Promotor Thiago Carriço de Oliveira, pelo fato da vítima não estar
incapacitada de consentir o ato sexual no momento em que estavam no camarim, o
acusado não teve o dolo (a intenção) de cometer o crime. A grande gafe, no
entanto, repousa justamente na alegação de que pelo fato de Mariana Ferrer não
estar bêbada ou dopada, a figura típica do crime de estupro não se configuraria
pela vítima possuir total discernimento sobre o que estava acontecendo.
O
próprio Código Penal, em seu art. 213, caput, tipifica a prática do estupro por
meio de duas condutas ilícitas: 1ª) constranger alguém, mediante violência
física ou grave ameaça, a ter conjunção carnal; 2ª) praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso. Apesar do empresário ter negado qualquer
contato físico com Mariana no depoimento dado na delegacia, André confirmou que
fez sexo oral nela, no interrogatório da audiência de instrução.
Desta
maneira, o sexo oral sem o consentimento da vítima se enquadra perfeitamente no
conceito de ato libidinoso, que foi inserido no tipo penal do art. 213, do CP
pela Lei n° 12.015/2009, configurando o estupro na segunda modalidade prevista no
dispositivo legal. Portanto, o advogado de defesa de Aranha, com base nas
provas obtidas no processo, até poderia refutar a tese do MP-SC com relação a
condição de vulnerabilidade da vítima. Mas não poderia desconsiderar a denúncia
feita pelo Parquet no que diz respeito a tipificação do estupro, uma vez que
tanto a materialidade quanto a autoria do crime foram confirmadas por exame
pericial.
Segundo
o advogado e professor universitário Cezar Roberto Bittencourt, Doutor em
Direito Penal, para que o estupro seja consumado na modalidade conjunção carnal
não é necessária a ejaculação e nem o rompimento da membrana himenal, ou seja
basta que haja a penetração (total ou parcial) do pênis na vagina. Já na
segunda modalidade, é necessário apenas a execução do ato libidinoso para a
consumação do delito. No caso de Marina Ferrer, o hímen foi rompido e resquícios
de sêmen do acusado foram encontrados em sua roupa, o que corrobora para a tese
de estupro na primeira modalidade.
Deste
modo, a sentença de absolvição prolatada pelo juiz Hudson Marcos, da 3ª Vara
Criminal de Santa Catarina, no mês de setembro deste ano, sob o argumento de
que não havia provas suficientes para condenar o acusado não é coerente e nem
se mantém pelas razões já explanadas anteriormente. Ainda mais pelo fato de André
Aranha ter inicialmente negado qualquer contato físico com a vítima e depois ter
confessado o sexo oral, que segundo Mariana, não foi consentido.
Na
terça-feira (03/11), o vídeo com partes da audiência de instrução, que foi
publicado na internet pelo site The Intercept Brasil, simplesmente viralizou nas
redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram. A revolta das pessoas,
especialmente das mulheres, se deu pelo constrangimento que o advogado Cláudio
Gastão causou à vítima na audiência, deferindo-lhe palavras ríspidas,
difamatórias e humilhantes. Não repetirei as frases utilizadas por
desnecessidade de agredir ainda mais a integridade moral da vítima que já se
encontra em sofrimento. Além do mais, o vídeo tornou-se de domínio público para
quem quiser assistir nas redes sociais.
O
mais chocante foi a omissão do juiz e do promotor para com o comportamento
agressivo do advogado, que deveriam ter interferindo em suas manifestações para
que não continuasse a constranger Mariana. A própria vítima suplicou para que o
juiz Hudson Marcos tomasse alguma providência, contudo, ele apenas pediu que
Cláudio Gastão mantivesse o nível e que Mariana Ferrer tomasse uma água para se
acalmar. Realmente, lastimável. Este comportamento evidencia que a Justiça ainda não está preparada para lidar com crimes violentos contra a mulher, enquanto não se desfizer da mentalidade machista e patriarcal que ainda impera na sociedade.
A
insinuação do Promotor de Justiça de que André teria cometido estupro culposo -
quando não há o dolo (intenção de cometer a infração penal) também foi outro
motivo de grande repercussão nas plataformas digitais, uma vez que o Ordenamento
Jurídico Brasileiro não prevê este tipo penal. Entretanto, no Memorando
expedido pelo MP-SC, os membros do Conselho Nacional do Ministério Público
(CNMP) se pronunciaram no sentido de que a reportagem feita pelo The Intercept
Brasil, insinuando a tese do estupro culposo, merece uma minuciosa apuração,
por ser falsa.
Em
seu site, o Intercept escreveu uma nota ao fim da matéria jornalística, dizendo
que: “A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o
caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum
momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo”.
Como
jornalista e advogada, posso afirmar que práticas como estas são consideradas sensacionalistas
que deturpam a veracidade dos fatos, principalmente quando se trata de
comunicar o público leitor sobre um assunto delicado que envolve termos jurídicos
complexos, em que uma palavra mal contextualizada pode alterar totalmente o
sentido do que fora dito. Ainda mais quando o jornalista dá a entender que o
entrevistado disse algo, quando na verdade, não quis dizer.
O
Senado aprovou voto de repúdio ao advogado, ao juiz e ao promotor pela
exposição da vítima ao sofrimento e humilhação na audiência de instrução e
julgamento e a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) irá apurar o caso para
punir os agentes públicos pelo desserviço que prestaram, pela falta de ética
profissional e moral, empatia e postura machista perante as respectivas
atuações no processo de Mariana. A OAB de Santa Catarina e o Ministério da
Mulher da Família e dos Direitos Humanos também solicitaram esclarecimentos
sobre a má conduta do advogado em audiência.
As hastags #nãoexisteestuproculposo,
#nãoaculturadoestupro, #justiçaporMariFerrer foram bastante utilizadas como
meio de protesto e indignação pelo o que aconteceu à blogueira catarinense.
Fontes: BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de
direito penal, 4: parte especial: dos crimes contra a dignidade sexual até dos
crimes contra a fé pública. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva,
2015.
https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/
https://www.conjur.com.br/2020-nov-03/conselheiros-cnmp-pedem-instauracao-reclamacao-promotor-ferrer
https://www.conjur.com.br/dl/cnmp-mariana-ferrer.pdf
Foto: Artista Flávio Wetten/Instagram @lifeonadraw
Comentários
Postar um comentário